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O poder político nas sociedades limitadas - Desdobramentos da lei 14.451/22

Decisão do DREI sobre quórum em sociedades limitadas reacende debate entre norma legal e autonomia contratual, gerando insegurança jurídica e controvérsia

Em maio deste ano, o DREI - Departamento de Registro Empresarial e Integração publicou decisão reconhecendo a prevalência do quórum legal de maioria absoluta do capital social para alteração do contrato social de determinada sociedade limitada, em virtude da reforma introduzida ao CC pela lei 14.451/22.

Essa decisão provocou discussões sobre o conflito normativo entre a lei e os atos constitutivos, uma vez que o contrato social da sociedade limitada em questão continha previsão expressa exigindo 75% do capital social para alteração do contrato social, em linha com o quórum legal anterior à reforma.

A nova legislação reduziu, portanto, o quórum necessário para a aprovação de alteração do contrato social, e, também, para a realização de incorporação, fusão, dissolução ou cessação do estado de liquidação, de 75% para maioria absoluta do capital social. A decisão do DREI resultou no arquivamento perante a Junta Comercial de uma alteração do contrato social por quotistas representando 55% do capital social, ainda que com o voto contrário de minoritários representando os demais 45%.

O contrato social analisado no caso continha referência aos dispositivos do CC que regem as sociedades limitadas, incluindo os quóruns de deliberação, mas, principalmente, também havia uma cláusula expressa fixando o quórum de 75% do capital social para alteração do contrato social, assim como ocorre em muitas outras sociedades limitadas. Ou seja, não havia uma lacuna do contrato social a respeito do quórum deliberativo, mas a regulação do contrato social foi interpretada pela autoridade administrativa como contrária à nova redação do CC.

De forma resumida, esse conflito aparente foi resolvido pelo DREI a partir dos seguintes fundamentos: 1) pelo critério cronológico, isto é, a norma posterior que revoga a anterior (legal e contratual, respectivamente), 2) pela natureza cogente atribuída à nova norma legal, e 3) pela aplicação dos princípios da função social da empresa e da boa-fé.

Em que pese o propósito positivo da nova legislação de atualizar e uniformizar os quóruns deliberativos das sociedades limitadas, considerar ter havido uma reforma "ex lege" do contrato social inevitavelmente traz insegurança jurídica. A previsão expressa de quórum qualificado pelas partes no contrato social reflete o seu acordo de vontades, inserido em uma estrutura jurídica complexa, muitas vezes amplamente negociada, de direitos e deveres dos quotistas entre si e perante a sociedade. Qualquer alteração da estrutura negociada pode causar um desequilíbrio irreversível entre os quotistas e desestabilizar a relação societária contratada.

A argumentação principiológica do DREI também merece críticas. Em primeiro lugar, por fazer referência ao dispositivo constitucional da função social da propriedade e ao CC de maneira genérica; também, porque o princípio da função social da empresa está previsto expressamente apenas na lei das sociedades por ações e não se prestar a atender a uma "governança eficiente e acessível à maioria", como indicado na decisão, mas a uma função institucional da sociedade empresária, voltada ao atendimento de interesses de terceiros. Em matéria de princípios, a boa-fé objetiva e seus pilares de cooperação, coerência e informação não se compatibilizariam com a mudança abrupta proposta pela decisão administrativa.

Nesse contexto, quotistas majoritários são automaticamente beneficiados, ainda que não tenham negociado tal vantagem. Não obstante a lei mantenha determinadas salvaguardas ao minoritário, como o direito à resolução da sociedade em relação a si próprio, elas não correspondem a uma contrapartida à perda do poder político. O direito à dissolução parcial tampouco serve em benefício do salutar "conflito de interesses" (ou conflito de agência majoritário/minoritário) inerente às sociedades.

A mesma discussão deverá voltar a acontecer em outras situações, uma vez que o tema não é pacífico. No caso analisado pelo DREI em âmbito administrativo, a alteração do contrato social protocolada pelos quotistas majoritários havia sido inicialmente arquivada pela Junta Comercial, desarquivada por maioria pelo Plenário da Junta Comercial após recurso dos minoritários, e, finalmente, arquivada pelo DREI em última instância. Em âmbito judicial, o TJ/SP também conta com decisões divergentes, por um lado interpretando a nova norma como cogente e inflexível, e, por outro, reconhecendo que o contrato social é ato jurídico perfeito, e, por isso, deve prevalecer.

Outras questões decorrentes dessas decisões também devem ser discutidas.

A primeira delas diz respeito à possibilidade ou não, de aumento do quórum qualificado nas hipóteses já previstas no CC, incluindo a alteração do contrato social. Dado que o quotista majoritário obteve um benefício legal, ele teria um incentivo para exigir contrapartidas dos minoritários diante de um poder político consolidado. Por outro lado, o majoritário também poderia vislumbrar uma série de desincentivos ao adotar tal postura, considerando riscos relacionados à inexequibilidade do objeto social ou da perda da contribuição do minoritário às atividades sociais. Se os sócios convergirem no sentido da manutenção do equilíbrio societário existente antes da entrada em vigor da lei e da mitigação da insegurança jurídica provocada pela decisão do DREI e decisões judiciais que reconheçam o quórum legal como cogente, é recomendável que realizem uma nova deliberação ratificando o quórum de 75% do capital social para alteração do contrato social.

A segunda questão é se a norma legal também teria prevalecido no caso de regulação de voto e exercício do poder de controle mediante a celebração de um acordo de quotistas. Considerando sua natureza jurídica parassocial, e a possibilidade de regulação minuciosa de vetos e concessões recíprocas em matérias específicas, essa é uma solução que deveria estar menos exposta a intervenções de natureza administrativa ou judicial. Portanto, o acordo de quotistas ofereceria maior flexibilidade e segurança jurídica para refletir a autonomia privada, o que serve como incentivo para a celebração de novos acordos e rigor no cumprimento daqueles já pactuados.

Sopesando risco e retorno, é recomendável aos quotistas que reafirmem seu compromisso societário pautado pelo reequilíbrio de forças neste momento, e mitiguem situações de insegurança jurídica por meio da autocomposição, inclusive mediante a negociação de acordos de quotistas. Do contrário, disputas pelo poder político no âmbito das sociedades limitadas são iminentes, podendo tornar disfuncional uma regulação que até então, em que pese haver críticas, trazia previsibilidade.

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